AS ORIGENS DO JIU-JITSU
Essa luta foi
criada na Índia?
A resposta a essa pergunta no subtítulo é um retumbante
“NÃO”. Mas por que tantos mestres e professores insistem em afirmar isso?
A razão é simples: há uma grande confusão entre fatos
históricos, tradições orais sem comprovação científica, mitos e lendas que
foram perpetuados ao longo do tempo. Vamos então aos fatos.
A origem das artes marciais é uma questão complexa e
praticamente impossível de determinar com precisão. Se considerarmos que o
termo “arte marcial” se refere ao treinamento de soldados para a guerra, essas
práticas surgiram em diferentes culturas, em épocas e contextos distintos.
Sabemos que quase todos os povos antigos tinham algum
sistema de combate corpo a corpo, mas a documentação mais antiga aponta a Índia
e a China como berços de várias artes marciais milenares.
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Gangaram Chintaman Tambat, ativo na década de 1790, anglo-indiano, sem data, aquarela e grafite com caneta e tinta marrom em papel creme médio, levemente texturizado |
Na Índia, duas das artes marciais mais antigas conhecidas
são o Kalari Payattu e o Vajra Mushti. O Kalari Payattu (“payattu” significa
treinamento de combate; “kalari” se refere ao espaço ou ginásio no qual ele é
praticado) era muito comum principalmente na região de Kerala, e sua origem
remonta a mais de 3.000 anos.
A prática envolve técnicas de luta armada e desarmada, além
de um componente espiritual, com ligações com o hinduísmo e o budismo. Já o
Vajra Mushti (“vajra” significa cetro ou arma divina; “mushti”, golpe ou soco)
era uma técnica de luta desarmada praticada pelos guerreiros da casta Xátria.
A Índia se tornou uma sociedade rigidamente estratificada
depois das invasões dos arianos, absorvendo a religião e as tradições desses
povos, inclusive suas artes de combate.
Segundo a hipótese mais aceita por acadêmicos, os arianos,
povos indo-europeus das estepes da Ásia Central, invadiram o norte da Índia por
volta de 1.500 a.C., estabelecendo o sistema de castas e introduzindo a
religião védica.
Eles trouxeram consigo técnicas de combate que, com o tempo,
foram incorporadas e adaptadas às tradições locais. Esses métodos de luta,
transmitidos de geração a geração, poderiam ser algumas das mais antigas formas
de combate corpo a corpo metodizadas conhecidas.
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Enciclopédia Ilustrada da China (Morokoshi Kinmō Zui Tang Tu Xun Meng La Hui), 1718-1719
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Já na China, as referências às artes marciais são igualmente
antigas e repletas de simbolismo cultural. O Jiao Di (角抵) é
uma das mais antigas formas documentadas de combate chinês.
Originado durante a dinastia Xia (2.070 a.C. – 1.600 a.C.),
Jiao Di era uma forma de luta que envolvia o uso de capacetes com chifres e na
qual os competidores tentavam derrubar seus adversários.
Ao longo dos séculos, esse combate evoluiu para o Shuai Jiao
(摔跤),
uma luta de arremesso e projeções que tem semelhanças com o judô e o jiu-jítsu,
mas com raízes muito mais antigas.
O ideograma para Shuai (摔) significa “jogar no
chão”, e Jiao (跤) significa “arremesso”, destacando a ênfase da técnica em
quedas e controle do oponente.
Estas formas de combate corpo a corpo eram usadas tanto em
batalhas quanto em competições, e são documentadas desde a dinastia Zhou (1.046
a.C. – 256 a.C.).
O Shuai Jiao foi amplamente praticado pelos exércitos da
dinastia Han (202 a.C. – 220 d.C.) e continua a ser uma parte importante da
cultura marcial chinesa, rivalizando em antiguidade com as artes marciais
indianas.
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A pintura da Dinastia Qing retrata uma academia de treinamento de artes marciais chinesas. Dois mestres estão sentados. Vários pares de alunos praticam movimentos de artes marciais |
Voltando ao mito de que o Jiu-Jítsu teria origem na Índia,
podemos entender de onde essa confusão se origina, ao examinarmos a relação
entre a Índia, a China e o Japão no contexto da disseminação do budismo.
Siddhartha Gautama, o Buddha (563 a.C. – 483 a.C.), nasceu
como príncipe da casta Xátria, e é provável que tenha sido treinado em artes
marciais como parte de sua educação.
Após sua “iluminação”, ele renunciou à violência, mas isso
não impediu que muitos monges budistas, em tempos posteriores, adotassem as
artes marciais para autodefesa durante suas peregrinações.
A chegada do budismo à China é um ponto crucial nessa
história. Acredita-se que o budismo tenha sido introduzido na China por volta
de 25 d.C., durante o reinado do imperador Ming, da dinastia Han do Leste.
Com essa chegada, houve um sincretismo entre o budismo, o
confucionismo e o taoismo, bem como entre estilos de artes marciais chinesas,
como o Kung Fu (Wu Shu).
O famoso 29º patriarca do budismo, Bodhidharma (Ta Mo em
chinês, Daruma em japonês, 440 d.C. – 528 d.C.), é amplamente creditado como o
responsável por conectar o budismo à prática marcial.
Ele viajou para a China por volta do século V e se
estabeleceu no famoso Templo Shaolin, onde fundou a escola de Kung Fu Shaolin e
o budismo Chan, que mais tarde se tornou o Zen no Japão.
A partir daí, várias tradições marciais e espirituais se
interligaram, e é provável que essa associação entre monges budistas e artes
marciais tenha levado à ideia errônea de que o Jiu-Jítsu teria nascido na
Índia.
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Uma representação do primeiro ensinamento do Buda aos seus discípulos – Foto de Anandajoti Bhikkhu |
No entanto, o Jiu-Jítsu, tal como o conhecemos, tem suas
raízes no Japão feudal, desenvolvido por samurais durante o período Heian (794
– 1185 d.C.) e refinado ao longo dos séculos seguintes.
O termo “Jiu-Jítsu” aparece pela primeira vez nos anais da
história do Japão por volta do século XVI, durante a guerra civil japonesa
(período Sengoku).
Jiu-Jítsu (柔術) significa “arte suave” e reflete o
princípio de utilizar a força do oponente contra ele, algo que difere das
formas de combate mais brutais e diretas vistas em outras culturas.
Portanto, por conta da intensa influência cultural e
religiosa da China no Japão (até os ideogramas são os mesmos), pode-se dizer
que as artes marciais japonesas têm em seus “DNAs” genes originários da Índia
e, mais fortemente, da China.
Referência de artigo
CARLOS LIBERI – Mestre de Jiu-Jítsu, faixa-coral
(sétimo grau); membro do Conselho Diretor da Gracie Barra Flórida,
instrutor-chefe da GB Sanford e da GB Campinas. Especialista em história e
filosofia das artes marciais pelas Faculdades Integradas de Santo André
(FEFISA).