DO JIU-JITSU AO JUDÔ
A Restauração Meiji e a transformação
do Japão
Samurais do clã Satsuma, membros da
Aliança Satchō, lutando do lado imperial durante o período da Guerra
Boshin – Foto: Felice Beato
A Restauração Meiji teve início em 1868, como resposta às
pressões internas e externas que o Japão enfrentava no fim do período Tokugawa
(1603 – 1868). Durante séculos, o país esteve isolado do mundo, sob a política
do sakoku (fechamento do país), mas esse isolamento foi abruptamente
interrompido em 1853, quando o comodoro americano Matthew Perry chegou ao Japão
e exigiu a abertura dos portos ao comércio internacional. A presença de Perry
expôs as fragilidades militares e econômicas do shogunato Tokugawa, colocando o
país em uma situação de vulnerabilidade.
Internamente, o descontentamento com a liderança Tokugawa
crescia. Samurais, camponeses e clãs regionais demonstravam insatisfação,
especialmente pela incapacidade do shogunato de resistir às potências
ocidentais. Clãs influentes, como Satsuma e Choshu, uniram forças para
pressionar pela derrubada do shogunato e defender a restauração do poder
imperial, como forma de unificar o país e modernizá-lo para enfrentar as
ameaças externas.
“A Agência da Casa
Imperial escolheu Uchida Kuichi, um dos fotógrafos mais renomados do Japão na
época, como o único artista autorizado a fotografar o Imperador Meiji em 1872 e
novamente em 1873. Até então, nenhum imperador havia sido fotografado. Uchida
estabeleceu sua reputação fazendo retratos de samurais leais ao xogunato
Tokugawa.”
A ARTE MARCIAL EM
DECLÍNIO E A RESISTÊNCIA DO JIU-JÍTSU
Embora a Rebelião Satsuma, em 1877, retratada no filme o
Último Samurai, tenha reacendido o interesse por algumas artes marciais, o
Jiu-Jítsu ainda enfrentava forte discriminação. A prática era vista como
antiquada, associada a encrenqueiros, e, frequentemente, perigosas
demonstrações públicas reforçavam sua má reputação. Instrutores ensinavam
golpes perigosos, até mesmo para crianças, e muitos iniciantes se machucavam ao
treinar com praticantes experientes.
JIGORO KANŌ E A
TRANSFORMAÇÃO DO JIU-JÍTSU
Foi nesse cenário que surgiu Jigoro Kanō, nascido em 28 de
outubro de 1860. Jovem, frágil e frequentemente humilhado em brigas escolares,
Kanō decidiu aprender Jiu-Jítsu, mesmo contra o conselho de ex-praticantes. Sua
jornada começou em 1877, na escola Tenshin Shinyō-ryū, com Fukuda Hachinosuke,
e continuou com outros mestres, como Iso Masatomo e Likubo Tsunetoshi, da
escola Kito-ryū. Kanō soube aproveitar os pontos fortes de ambas as escolas e
compensar suas lacunas, desenvolvendo um estilo único que se tornaria o Judô
Kodokan.
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Retrato do
falecido Sr. Kanō
A CRIAÇÃO DO JUDÔ
KODOKAN Kanō redefiniu o propósito do Jiu-Jítsu. Em vez de focar
apenas no combate, ele colocou o aprimoramento físico, mental e moral como
objetivos principais, relegando o combate a um meio para alcançá-los. Essa
abordagem transformou a prática, tornando-a mais acessível e alinhada à
sociedade moderna. O novo nome, Judô (Caminho Suave), refletia essa mudança,
enquanto Kodokan significava “Instituto do Caminho da Fraternidade” (Ko –
fraternidade, Do – caminho, Kan – instituto). A VISÃO DE JIGORO
KANŌ PARA O JUDÔ Jigoro Kanō tinha um objetivo claro ao criar o Judô, como
ele mesmo explicou: “Eu estudei jujutsu não somente porque o achei
interessante, mas também porque compreendi que seria o meio mais eficaz para a
educação do físico e do espírito. Porém, era necessário aprimorar o velho
jujutsu para torná-lo acessível a todos, modificando seus objetivos, que não
eram voltados para a educação física ou moral, nem muito menos para a cultura
intelectual. Por outro lado, embora as escolas de jujutsu tivessem suas
qualidades, elas também apresentavam muitos defeitos. Concluí que era
necessário reformular o jujutsu como uma arte de combate. Quando comecei a
ensinar, o jujutsu estava em descrédito. Alguns mestres ganhavam a vida
organizando espetáculos entre seus alunos, promovendo lutas e cobrando ingresso
para quem quisesse assistir. Outros se apresentavam como artistas de luta ao
lado de lutadores de sumô. Essas práticas degradantes prostituíam uma arte
marcial, e isso me era repugnante. Eis a razão de eu ter evitado o termo
jujutsu e adotado o termo judô. Para distinguir minha escola da academia
Jikishin Ryū, que também utilizava o nome judô, denominei minha escola de Judô
Kodokan, apesar de o nome parecer um pouco longo.” Assim, Jigoro Kanō não apenas fundou o Kodokan, mas também
redefiniu os valores e objetivos das artes marciais no Japão, criando um
sistema que priorizava o desenvolvimento físico, mental e moral, além de
resgatar a dignidade de uma prática ancestral. O SISTEMA DO JUDÔ
KODOKAN Como explicado acima, o sistema de Kanō foi dividido em três
pilares: luta, treinamento físico e treinamento mental. A prática incluía o
randori (prática livre) e os katas (formas técnicas), que foram sistematizados
para facilitar o aprendizado em grupos maiores. Kanō desenvolveu e adaptou
técnicas de diversas escolas, criando um repertório estruturado e eficiente. Entre os katas criados estavam o Kime no Kata (defesa
pessoal), Itsutsu no Kata (as cinco formas), Katame no Kata (formas de controle
corpo a corpo) e Go no Kata (formas de força). Essas técnicas foram
fundamentais para consolidar o Judô Kodokan como uma arte marcial completa e
moderna. O LEGADO DE KANŌ
Jigoro Kanō alcançou seus objetivos: transformou o Jiu-Jítsu
em uma prática universal, promovendo o desenvolvimento integral do indivíduo e
garantindo a sobrevivência da arte em uma sociedade moderna. Sua criação, o
Judô, influenciou profundamente o criador do Jiu-Jítsu Brasileiro, o
Grão-Mestre Carlos Gracie (por meio dos ensinamentos de Mitsuyo Maeda, o “Conde
Koma”, faixa preta da Kodokan), e permanece como um marco no mundo das artes
marciais.
 | O judoca japonês naturalizado brasileiro, Mitsuyo Maeda (Otávio Maeda), o “Conde Koma” no 4º dan
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 | Santuário Meiji em Tóquio, Japão
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Referência de artigo
CARLOS LIBERI – Mestre de Jiu-Jítsu, faixa-coral
(sétimo grau); membro do Conselho Diretor da Gracie Barra Flórida,
instrutor-chefe da GB Sanford e da GB Campinas. Especialista em história e
filosofia das artes marciais pelas Faculdades Integradas de Santo André
(FEFISA).
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